segunda-feira, 16 de abril de 2018

Liberalismo, Liberdades Individuais e Iluminismo

Defensores do iluminismo creditam direitos individuais e liberdades ao movimento e usurpam contribuições da tradição, religião e nacionalismo para o progresso humano. 

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Rodrigo Constantino, no artigo entitulado "QUE “LIBERAIS” SÃO ESSES QUE PREFEREM CIRO GOMES A PAULO GUEDES?", na Gazeta do Povo:
É verdade também que, do lado direito, há conservadores que não são liberais, apesar de pontos de convergência, e nacionalistas autoritários, reacionários e estatizantes que sequer conservadores são, ou ao menos não os “de boa estirpe”, que sustentam o legado do Iluminismo britânico. Mas os liberais clássicos ainda são minoria política, e quem não tem cão caça como gato.


Militantes do iluminismo vendem bem seu peixe. Ciência, medicina, instituições políticas livres, a economia de mercado — essas coisas que melhoraram dramaticamente nossas vidas — são todas, escreve o acadêmico americano Steven Pinker, o resultado de "um processo iniciado pelo iluminismo no final do século XVIII", quando os filósofos "substituíram dogma, tradição e autoridade por razão, debate e instituições de busca da verdade". 

O articulista do New York Times David Brooks concorda, assegurando a seus leitores que “o projeto iluminista nos deu o mundo moderno”. Então, agradeça por “pensadores como John Locke e Immanuel Kant, que argumentaram que as pessoas deveriam parar de aceitar cegamente as autoridades” e, em vez disso, "pensar sobre as coisas desde o seu fundamento”.

Pinker resume: "O progresso é um presente dos ideais do iluminismo, e continuará na medida em que nos dedicarmos a esses ideais".

Quase nada do que vai acima é verdade. Considere a alegação de que a Constituição dos EUA foi um produto do pensamento iluminista, resultado da rejeição das tradições políticas do passado e da pura aplicação da razão humana. A refutação desta ideia requer apenas a leitura de textos sobre a constituição inglesa. O amplamente divulgado tratado do século XV, “Elogio das Leis da Inglaterra”, escrito pelo jurista John Fortescue, explica claramente o devido processo legal e a teoria agora chamada de “freios e contrapesos”. A constituição inglesa, escreveu Fortescue, estabelece liberdade pessoal e prosperidade econômica, protegendo o indivíduo e sua propriedade do governo. As proteções que aparecem na Declaração de Direitos dos EUA foram estabelecidas principalmente no seculo XVII pelos homens que redigiram os documentos constitucionais da Inglaterra - homens como John Selden, Edward Hyde e Matthew Hale.

Esses estadistas e filósofos articularam os princípios do constitucionalismo anglo-americano moderno séculos antes da criação dos EUA. No entanto, eles não eram homens do iluminismo. Eles eram nacionalistas ingleses religiosos e políticos conservadores. Eles estavam familiarizados com a alegação de que a razão irrestrita deveria refazer a sociedade, mas eles a rejeitaram em favor do desenvolvimento de uma constituição tradicional que havia sido testada e provada. Quando Washington, Jay, Hamilton e Madison iniciaram um governo nacional nos EUA, eles primeiramente se voltaram para essa tradição conservadora, adaptando-a às condições locais.

Tampouco há muita verdade na afirmação de que devemos a ciência e a medicina modernas ao pensamento iluminista. Uma reivindicação mais séria de suas origens pode ser feita pelo Renascimento, o período entre os séculos XV e XVII, particularmente na Itália, Holanda e Inglaterra. Os reis ingleses ligados à tradição, por exemplo, patrocinaram instituições científicas pioneiras como o Royal College of Physicians, fundado em 1518. Um de seus membros, William Harvey, descobriu a circulação do sangue no início do século XVII. A Royal Society of London for Improving Natural Knowledge, fundada em 1660, foi liderada por homens como Robert Boyle e Isaac Newton, figuras decisivas da química e da física. Mais uma vez, estas eram figuras politica e religiosamente conservadoras. Eles conheciam os argumentos, mais tarde associados ao iluminismo, para romper com a tradição política, moral e religiosa, mas os rejeitaram.

Em suma, os principais avanços que os entusiastas do iluminismo de hoje querem reivindicar tiveram seu início muito antes disso. E não está claro o quão útil o iluminismo foi quando chegou.

O que, então, foi "o iluminismo"? Este termo foi promovido, em um primeiro momento, pelo filósofo do final do século XVIII Immanuel Kant. O Sr. Pinker abre seu primeiro capítulo ao endossar a declaração de Kant de que apenas a razão permite que os seres humanos saiam de sua "imaturidade auto-infligida", deixando de lado os "dogmas e fórmulas" da autoridade e tradição.

Para Kant a razão é universal, infalível e a priori — ou seja, independente da experiência. No que diz respeito à razão, existe uma resposta eterna e inequivocamente correta a todas as questões da ciência, moralidade e política. O homem é racional apenas na medida em que ele reconhece isso e gasta seu tempo tentando chegar a essa resposta correta.

Essa arrogância assombrosa é baseada em uma ideia poderosa: que a matemática pode produzir verdades universais começando por premissas auto-evidentes — ou, como Rene Descartes havia dito, "idéias claras e distintas" — e então procedendo por meio de deduções infalíveis que Kant chamou de "certeza apodítica". Como esse método funcionava na matemática, insistiu Descartes, ele poderia ser aplicado a todas as outras disciplinas. A ideia foi posteriormente retomada e refinada por Thomas Hobbes, Baruch Spinoza, John Locke e Jean-Jacques Rousseau, assim como por Kant.

Essa visão da "razão" — e de seu poder, livre dos grilhões da história, tradição e experiência  é o que Kant chamou de "iluminismo". E está completamente errada. A razão humana é incapaz de chegar a respostas universalmente válidas e incontestavelmente corretas aos problemas da ciência, moralidade e política aplicando os métodos da matemática.

A primeira advertência foi a obra de Descartes, “Os Princípios da Filosofia”, que afirmava chegar a uma determinação final da natureza do universo, movendo-se de premissas autoevidentes através de deduções infalíveis. Esse trabalho volumoso é tão escandalosamente absurdo que nenhuma versão completa em inglês está sendo publicada nos dias de hoje. No entanto, a obra-prima de Descartes tomou a Europa de assalto e durante décadas foi o principal livro-texto da escola cartesiana de ciência. Kant seguiu esse exemplo duvidoso com seus "Fundamentos metafísicos da ciência natural" (1786), nos quais ele afirmava ter deduzido as leis do movimento de Newton usando a razão pura, sem evidência empírica.

Costumava ser um fato aceito que grande parte do sucesso do mundo moderno surgiu de tradições conservadoras que eram abertamente céticas em relação à razão. Quando eu era um estudante de pós-graduação na Rutgers durante a década de 1980, o curso introdutório em teoria política moderna tinha uma seção chamada "Críticos do Iluminismo". Estavam incluídos pensadores mais conservadores, como David Hume, Adam Smith e Edmund Burke. Eles enfatizaram a falta de confiabilidade do "raciocínio abstrato", que eles acreditavam que poderia justificar virtualmente qualquer idéia, não importando o quão desconectada da realidade, contanto que soasse auto-evidente para alguém.

Uma dessas ideias foi a alegação de Locke de que o Estado foi fundado em um contrato entre indivíduos livres e iguais — uma teoria que os críticos do iluminismo entendiam ser historicamente falsa e perigosa. Embora a teoria tenha causado um dano relativamente pequeno à Grã-Bretanha ligada à tradição, ela levou a Europa à catástrofe. Importada para a França por Rousseau, rapidamente derrubou a monarquia e o Estado, produzindo uma série de constituições fracassadas, o Reino do Terror e, finalmente, as Guerras Napoleônicas — tudo em nome da razão infalível e universal. Milhões de pessoas morreram quando os exércitos de Napoleão tentaram destruir e reconstruir todos os governos da Europa, de acordo com a teoria política correta permitida pela filosofia do iluminismo. No entanto, Napoleão estava simplesmente tentando, nas palavras de Brooks, "pensar as coisas desde o início".

Os defensores do iluminismo tendem a pular esta parte da história. O livro de 450 páginas de Pinker não menciona a Revolução Francesa. Pinker cita Napoleão como um "expoente da glória militar", mas nada diz sobre o fato de ter lançado uma guerra universal em nome da razão. Esses escritores também tendem a ignorar a dívida de Karl Marx para com o iluminismo. Marx via a si mesmo como um promotor da razão universal, continuando o trabalho da Revolução Francesa ao insistir que os trabalhadores do mundo parassem de (novamente nas palavras de Brooks) “aceitar cegamente a autoridade”. A “ciência” que Marx desenvolveu “desde o início" matou dezenas de milhões no século XX.



O iluminismo também propagou o mito de que as únicas obrigações morais das pessoas são aquelas que elas escolhem livremente atraves da razão. Essa teoria devastou a família, uma instituição construída sobre obrigações morais que muitas pessoas não escolhem, a menos que guiadas pela tradição. O livro de Pinker está cheio de gráficos mostrando a melhora nas condições materiais nos últimos séculos. Ele não nos oferece nenhum quadro descrevendo o colapso do casamento ou o aumento de nascimentos fora do casamento em sociedades “iluminadas”. Ele também não está preocupado com a destruição da religião ou do estado nacional. Kant acreditava que ambos estavam fora de conformidade com a razão, e Pinker não vê motivos para discordar.

O que nos traz ao coração do que está errado com o movimento neo-iluminista. Pinker elogia o ceticismo como uma pedra angular do "paradigma de como alcançar um conhecimento confiável". Mas as principais figuras da filosofia do iluminismo não eram céticas. Exatamente o contrário: o objetivo deles era criar seu próprio sistema de verdades universais e, nessa busca, eles eram tão rígidos quanto os medievais mais dogmáticos.

Conservadores anglo-escoceses, de Richard Hooker e Selden a Smith e Burke, estavam atrás de algo muito diferente. Eles defendiam valores nacionais e religiosos mesmo enquanto cultivavam um "ceticismo moderado" — uma combinação que o mundo de língua inglesa chamava de "bom senso". Se instituições antigas não precisavam de reparos, o bom senso os levava a deixá-las como eram, pois sempre havia o risco de piorar as coisas. Mas o senso-comum também viu potencial nas tentativas de melhorar o conhecimento da humanidade, desde que a fraqueza e falta de confiabilidade da razão humana fossem mantidas firmemente em vista. Como Newton escreveu em seu “Opticks”: “argumentar a partir de experimentos e observações por indução não é uma demonstração de conclusões gerais, mas é a melhor maneira de argumentar o que a natureza das coisas admite”.

Penso nessas palavras moderadas e céticas com frequência hoje em dia, enquanto acompanho a transformação política e cultural do mundo de língua inglesa. As elites americanas e britânicas, antes comprometidas com uma mistura de tradição e ceticismo, agora clamam pela iluminismo. Eles insistem que chegaram em certezas universais. Mostram desprezo digno do próprio Kant em relação àqueles que se recusam a abraçar seus dogmas — classificando-os como "ignorantes", "imaturos", "iliberais", "retrógrados", "deploráveis" e coisa pior.

Se essas elites ainda tivessem bom senso, elas não falariam dessa maneira. O excesso de confiança no iluminismo trouxe consequências trágicas suficintes para justificar sérias dúvidas sobre alegações feitas em nome da razão — assim como a dúvida é valiosa ao abordar outros sistemas dogmáticos. Tais dúvidas deveriam indicar mais tolerância para com diferentes formas de pensar. Instituições nacionais e religiosas podem não se encaixar no iluminismo, mas têm coisas importantes a nos ensinar.

A verdade política mais importante da nossa geração pode ser esta: você não pode defender o iluminismo e o ceticismo. Você tem que escolher apenas um.


Yoram Hazony é um filósofo israelense, estudioso da Bíblia e teórico político.


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