quarta-feira, 11 de julho de 2018

Homossexualismo e a hipocrisia de judeus e cristãos


O argumento acima é extremamente popular. Ele se presta  entre menções a leis verdadeiras e a outras inventadas pela moça*  a desmascarar a hipocrisia dos crentes que condenam o homossexualismo com base no texto bíblico, mas não se importam com os demais preceitos da Bíblia. 

Para a maioria das denominações cristãs a questão é simples e foi esclarecida por Tomás de Aquino ao classificar os preceitos bíblicos como morais, cerimoniais e judiciais:
"E a esta luz, é necessário admitirem-se três espécies de preceitos da lei antiga: os morais, relativos ao ditame da lei natural; os cerimoniais, que são as determinações do culto divino; e os judiciais, que são as determinações da justiça a ser observada entre os homens. Por onde, depois de ter dito o Apóstolo, que a lei é santa, acrescenta: o mandamento é santo, e justo, e bom. Justo, quanto aos preceitos judiciais; santo, quanto aos cerimoniais, pois santo se chama ao que é consagrado a Deus; e bom, i. é, honesto, quanto aos preceitos morais." [1]

Ainda Aquino, sobre a validade dos preceitos cerimoniais:
Todos os preceitos cerimoniais da lei antiga ordenavam-se ao culto de Deus, como já dissemos. Ora, o culto externo deve proporcionar-se ao interno, por consistir na fé, na esperança e na caridade. Por onde, à diversidade do culto externo devia corresponder a do interno. Ora, podemos distinguir três estados no culto interno. — Um, no qual se tem fé e esperança nos bens celestes e no que nos leva a esses bens; tudo porém considerado como coisas futuras. E tal foi o estado da fé e da esperança, na lei antiga. — Outro é o estado do culto interno, no qual se tem fé e esperança nos bens celestes, como em bens futuros; e nos meios que nos levam a esses bens, mas como meios presentes ou pretéritos. E este é o estado da lei nova. — O terceiro estado é o em que ambas essas coisas se crêem como presentes, e não se espera nada de futuro. E este é o dos bem-aventurados.

Ora, nesse estado da bem-aventurança, nada há de figurado no atinente ao culto divino senão só a ação de graças e louvor. E por isso diz a Escritura (Ap 21, 22): E não vi templo nela; porque o Senhor Deus todo poderoso e o cordeiro é o seu templo. Logo e pela mesma razão, as cerimônias do primeiro estado, que figuravam o segundo e o terceiro, deveram cessar, com o advento do segundo. E deviam ser estabelecidas outras cerimônias, convenientes ao estado do culto divino, para o tempo em que, sendo futuros os bens celestes, os benefícios de Deus, que nos levam aqueles bens, são presentes.

Sobre a validade dos preceitos judiciais:
Os preceitos judiciais não im­plicaram obrigação perpétua, e por isso foram anulados com o advento de Cristo. Porém, de modo diferente por que o foram os cerimoniais. Pois, estes o foram de modo a não só ficarem sendo letra morta, mas ainda mortíferos para os que os observarem, depois de Cristo, sobretudo depois da divulgação do Evangelho. Ao passo que os preceitos judiciais são, por cedo, letra morta, por não terem força de obrigar, mas não são mortíferos. Assim, príncipe, que mandasse observá-los no seu reino não pecaria, salvo se fossem observados ou se mandasse que o fossem, como tendo força obrigatória, em virtude da instituição da lei antiga. Pois, essa intenção de observá-los seria mortífera. E a razão dessa diferença pode ser encontrada no que já ficou dito (a. 2). Pois, como dissemos, os preceitos cerimo­niais são figurativos, primariamente e em si mesmos, como tendo sido principalmente insti­tuídos para figurar os mistérios futuros de Cristo. Portanto, a observância mesmo deles prejudica à verdade da fé, pela qual confessamos esses mistérios já se terem cumprido. Ao passo que os preceitos judiciais não foram instituídos para figurar, mas para dispor o estado do povo judeu, que se ordenava para Cristo. Por onde, mudado o estado desse povo, com o advento de Cristo, os preceitos judiciais perderam a força obriga­tória; pois a lei era um pedagogo conducente a Cristo, como diz o Apóstolo (Gl 3, 24). Como porém esses preceitos judiciais não se ordenavam a figurar, mas a levar à prática de certos atos, a obser­vância deles, absolutamente, não prejudica a verdade da fé. A intenção porém, de observá-los como lei obrigatória prejudica à referida verdade, por daí se concluir que o estado do povo judeu ainda dura, e que Cristo ainda não veio. 

E quanto aos preceitos morais?
Para Tomás de Aquino, ao contrário do que ocorre com os preceitos judiciais e cerimoniais, eles continuam válidos:
"[...] os preceitos morais recebem sua força da própria razão natural e obrigam ainda que nunca sejam estabelecidos por lei. Destes, alguns são comuníssimos
e tão evidentes que não precisam de promulgação, como os preceitos do amor a Deus e ao próximo, e outros tais que são fins dos outros preceitos, como foi dito antes. Acerca destes, não cabe erro no juízo da razão. Há outros que são mais concretos, mas cuja razão o próprio povo pode ver fácil e instantaneamente. No entanto, como acerca deles alguns ainda podem errar, necessitam por isso de promulgação. Tais são os preceitos do Decálogo. Há outros cuja razão não é evidente para todos, mas apenas para os sábios, e estes foram adicionados ao Decálogo e dados por Deus ao povo por intermédio de Moisés e Arão."
"A lei antiga distingue-se da lei natural, não como absolutamente diferente dela, mas por lhe fazer certos acréscimos. Pois, assim como a graça pressupõe a natureza, assim é necessário pressuponha a lei divina à natural.   
Era conveniente que a lei divina providenciasse, não só quanto ao que a razão humana não pode alcançar, mas também em relação ao que ela pode errar. Ora, em relação aos preceitos morais, no atinente aos preceitos generalíssimos da lei natural, a razão humana não podia errar completamente; mas o costume de pecar a obscurecia quanto às ações particulares. Relativamente porém aos outros preceitos morais, que são quase conclusões deduzidas dos princípios gerais da lei da natureza, a razão de muitos aberrava, de modo a julgar lícitas certas coisas em si mesmas más. Por isso, era necessário, contra uma e outra deficiência, ser o homem socorrido pela autoridade da lei divina. Assim também, entre as verdades que devemos crer, são-nos propostas, não só aquelas que a razão não pode alcançar, como a Trindade de Deus; mas também, as que o pode a razão reta, como a unidade divina. E isso para obviar o erro da razão humana, em que muitos caíam."

Os preceitos morais, que como diz Aquino, "hão de pertencer à lei da natureza", são, portanto, irrevogáveis. Eles incluem regulamentos sobre justiça, comportamento e conduta sexual. 

Seguindo o mesmo princípio, o catecismo da Igreja católica declara que "a lei moral é o trabalho da Sabedoria divina. Seu significado bíblico pode ser definido como instrução paterna, a pedagogia de Deus. Ele prescreve para o homem os caminhos, as regras de conduta que conduzem à bem-aventurança prometida; proscreve os caminhos do mal que o afastam de Deus e do seu amor. É ao mesmo tempo firme em seus preceitos e, em suas promessas, digna de amor." (1950)

"As expressões da lei moral são diversas, mas todas coordenadas entre si: a lei eterna, fonte em Deus de todas as leis; a lei natural; a lei  revelada, compreendendo a Lei antiga e a Lei nova ou evangélica: por fim, as leis civis e eclesiásticas." (1952)

Portanto não há hipocrisia. Os preceitos cerimoniais e judiciais foram abolidos  ainda quos judiciais continuem tendo sua aplicação permitida. Já os morais, parte da lei natural, continuam válidos.   


*Entre os muitos erros estão a afirmação de que existe a proibição de "fazer a barba" e de "usar roupa com mais de um tecido".

Levítico 19:19


יט  אֶת-חֻקֹּתַי, תִּשְׁמֹרוּ--בְּהֶמְתְּךָ לֹא-תַרְבִּיעַ כִּלְאַיִם, שָׂדְךָ לֹא-תִזְרַע כִּלְאָיִם; וּבֶגֶד כִּלְאַיִם שַׁעַטְנֵז, לֹא יַעֲלֶה עָלֶיךָ.
19 Obedeçam às minhas leis. Não cruzem animais domésticos de espécies diferentes. Não semeiem tipos diferentes de semente no mesmo campo. Não vistam roupas feitas de tipos diferentes de tecidos.

Sha'atnez (שַׁעַטְנֵז), que na tradição judaica é um acróstico que se refere a uma proibição do uso de uma vestimenta na qual a lã e o linho são misturados, é traduzido como uma proibição geral da mistura de qualquer tipo diferente de tecido. Isso pode ser visto com clareza em Deuteronômio 22:11:

יא  לֹא תִלְבַּשׁ שַׁעַטְנֵז, צֶמֶר וּפִשְׁתִּים יַחְדָּו
11 Não vestirás roupas (sha'atnez) com fios de lã e de linho misturados no mesmo tecido.

Já a inexistente proibição "de fazer a barba" é baseada na distorção do verso 19:27 em Levítico:

כז  לֹא תַקִּפוּ, פְּאַת רֹאשְׁכֶם; וְלֹא תַשְׁחִית, אֵת פְּאַת זְקָנֶךָ.
17 Não cortareis vosso cabelo dos lados da cabeça, nem aparareis as pontas da barba.

A proibição, como consta em um dos mais importantes códigos legais judaicos, não se refere simplesmente a "fazer a barba": 

י. אינו חייב על השחתת פאת הזקן אלא בתער, אבל במספרים מותר, אפילו כעין תער…  יא. פאות הזקן הם ה’, ורבו בהם הדעות, לפיכך ירא שמים יצא את כולם ולא יעביר תער על כל זקנו כלל.
10. Não viola a proibição de raspar os cantos de sua barba exceto com uma navalha, mas com tesoura é permitido mesmo [que a use] como uma navalha [...] 11. Existem cinco cantos da barba, mas existem muitas opiniões. Portanto, aquele que teme os céus seguirá todas elas, não usando uma lâmina de barbear em seu rosto.
Aharon Lichtenstein, rabino ortodoxo

De acordo com a lei como registrada acima, é proibido ao homem raspar apenas "os cantos de sua barba". A regra aplica-se apenas ao ato de barbear com uma navalha. A depilação, o uso de tesouras e puxar o pêlo com a mão não são proibidos. O mesmo se dá com a maioria dos barbeadores elétricos, desde que a navalha não toque o rosto.

Judeus continuam seguindo estes e outros preceitos bíblicos.