quarta-feira, 23 de maio de 2018

John Locke e os limites do liberalismo


John Locke é um dos filósofos políticos mais influentes do período moderno. Seu nome está intimamente ligado a defesa da liberdade individual e de limitações do poder político, e seu pensamento é visto como parte fundamental dos princípios filosóficos do liberalismo. 

Sua Carta Acerca da Tolerância é um texto-chave no desenvolvimento de idéias liberais modernas no que se refere a liberdade de expressão e de culto. No entanto, revela também o que o pensador considera ser os limites da liberdade individual e a legitimidade da interferência governamental em defesa da sociedade e do próprio governo.

O trecho abaixo mostra, mais uma vez, que a noção de um liberalismo “puro”, em oposição ao liberalismo conservador, é totalmente estranha ao liberalismo clássico. Locke, assim como praticamente todos os primeiros liberais, era um moralista apegado as tradições morais da sociedade do seu tempo:
"[...] não devem ser toleradas pelo magistrado quaisquer doutrinas incompatíveis com a sociedade humana e contrárias aos bons costumes que são necessários para a preservação da sociedade civil"
"os que negam a existência de Deus não devem ser de modo algum tolerados. As promessas, os pactos e os juramentos, que são os vínculos da sociedade humana, para um ateu não podem ter segurança ou santidade, pois a supressão de Deus, finda que apenas em pensamento, dissolve tudo. Além disso, uma pessoa que solapa e destrói por seu ateísmo toda religião não pode, baseado na religião, reivindicar para si mesma o privilégio de tolerância. Quanto às outras opiniões práticas, embora não isentas de erros, se não tendem a estabelecer domínio sobre outrem, ou impunidade civil para as igrejas que as ensinam, não pode haver motivo para que não devam ser toleradas."
Para John Locke, os ateus, ao não acreditarem em uma divindade, não tinham nada como sagrado, e por isso eram incapazes de honrar o contrato social.


Quanto as limitações do poder político: 
Poder-se-á argüir que pelas leis de Moisés os idólatras deviam ser expulsos. Embora seja isso verdadeiro pela lei de Moisés, de modo algum compele os cristãos. Na realidade, não se deve assumir que o que foi assentado pela lei dos judeus consiste no modelo geral para alguém realizar algo. Em nada ajudará, ademais, mencionar a bem conhecida, mas neste caso inútil, distinção entre a lei moral, judicial e cerimonial. Desde que uma lei positiva não compele qualquer pessoa, exceto os que foram compreendidos pela lei. "Ouve, ó Israel" limita suficientemente as obrigações à lei de Moisés somente a esse povo. Consiste isso numa resposta suficiente aos que desejam prescrever a pena máxima aos idólatras de acordo com a autoridade da lei de Moisés.
Do ponto de vista da comunidade judaica, os idólatras eram de dois tipos. Primeiro, os que foram iniciados pelos ritos mosaicos e tornados cidadãos desta comunidade, abjurando, mais tarde, o culto do Deus de Israel. Sendo acusados de alta traição, eram processados como traidores e rebeldes. Pelo fato de a comunidade dos judeus ser bem diferente das outras, porquanto, organizada como uma teocracia, não permitia, ou nem podia permitir, como ocorreu depois do nascimento de Cristo, qualquer distinção entre a Igreja e a comunidade. Assim sendo, as leis estabelecidas por esse povo acerca do culto de uma Divindade invisível consistiam em leis civis inerentes ao seu governo político, cujo legislador era o próprio Deus. Ora, se puderem me mostrar a existência de alguma comunidade instituída nessa base, admitirei que suas leis eclesiásticas se confundem com a civil, e que todos os seus súditos podem e devem ser impedidos de adotar formas de culto ou de ritos estranhos pela espada do magistrado. Não existe, porém, de modo algum, tal coisa prescrita pelo Evangelho com respeito a certa comunidade cristã. Admito que vários reinos e cidades se converteram à fé cristã, apesar disso, retiveram e preservaram sua antiga forma de governo, por não haver afinidade entre a sua lei e a de Cristo. Ele ensinou a fé e a conduta segundo as quais os indivíduos podiam alcançar a vida eterna, sem, contudo, instituir comunidade alguma nem introduzir nenhuma nova forma de governo que fossem peculiares ao seu próprio povo; ademais, não facultou a nenhum magistrado o uso da espada para forçar os homens a adotar a fé ou o culto prescritos ao seu povo, ou proibi-los de praticar outra religião. 
Segundo, os estrangeiros, ou os estranhos à comunidade de Israel, não eram obrigados pela força a aceitar os ritos mosaicos; ao contrário, precisamente no parágrafo em que os israelitas idólatras são ameaçados de morte (Êx 22, 20-21), é previsto por lei que ninguém deve humilhar ou oprimir um estranho. Admito que as sete nações que ocupavam a terra prometida aos israelitas deviam mais tarde ser eliminadas, mas não o fizeram porque eram idólatras. Pois, se essa fosse a razão, por que os mobitas e outras tribos foram poupados, embora fossem idólatras? Isso foi devido ao fato de que Deus, especificamente o rei do povo judeu, não podia admitir a adoração de nenhuma outra deidade em seu reino, isto é, na terra de Canaã, pois isto consistia rigorosamente num ato de alta traição contra si mesmo. Essa ostensiva rebelião devia ser, em última análise, inconsistente com o domínio do Deus israelita , pois neste país era claramente político. Portanto, toda idolatria devia ser excluída das fronteiras de seu reino, porque consistia em reconhecer outro rei, dando no mesmo afirmar de outro deus, contrário ao seu direito de domínio. Os habitantes deviam também ser expulsos, afim de que toda a terra desocupada fosse devolvida aos israelitas. E pela mesma razão os filhos de Esaú e Lot expulsaram os emins e horins de seu território e as suas terras, pelos mesmos motivos, foram dadas por Deus aos invasores, como o leitor encontrará claramente no segundo capítulo do Deuteronômio. Embora toda idolatria fosse, desse modo, arrancada das fronteiras da terra de Canaã, ainda assim não se executaram todos os idólatras. A família inteira de Rahab, toda a nação dos gibeonitas articularam-se com Josué e foram poupadas; e havia muitos cativos entre os hebreus que eram idólatras. Davi e Salomão conquistaram muitos países fora dos limites da Terra Prometida, levando suas conquistas até o Eufrates e transformando os países em províncias. Entre tantos prisioneiros, entre tantos povos submetidos ao poder hebraico, ninguém, pelo que sabemos, jamais foi punido por idolatria, embora todos fossem disso culpados; ninguém foi obrigado, pela força e penalidades, a aceitar a religião de Moisés e o culto do verdadeiro Deus. Mas, se alguém se tornasse um prosélito e quisesse adquirir cidadania, aceitaria as leis do Estado de Israel, isto é, ao mesmo tempo que abraçaria sua religião. Não o fazia coagido pelo governador, mas espontaneamente, por sua livre vontade. Não se submetia involuntariamente com o fito de mostrar obediência, mas a buscava e a solicitava como um privilégio. Assim que se tornasse um cidadão, submetia-se às leis da comunidade, que proibiam a idolatria dentro dos limites da terra de Canaã. Mas esta lei não fazia provisão aos povos residentes fora desses limites.  
[...]
Ademais, o magistrado não deve proibir que se mantenham ou se professem quaisquer opiniões especulativas em qualquer igreja porque não dizem respeito aos direitos civis de seus súditos. Se um católico acredita ser realmente o corpo de Cristo o que outro homem chama de pão, isso não redunda em prejuízo ao vizinho. Se um judeu não acredita que o Novo Testamento é a palavra de Deus, em nada altera quaisquer direitos civis. Se um pagão tem dúvidas acerca dos dois Testamentos, não se deve portanto puni-lo como cidadão desonesto. O poder do magistrado e as propriedades dos cidadãos estão igualmente assegurados se alguém acredita ou não nessas coisas. Admito de bom grado que essas opiniões são falsas e absurdas. Não cabe, todavia, às leis fundamentar a verdade das opiniões, mas tratar da segurança e proteção da comunidade e dos bens de cada homem. Realmente, isso não é causa de arrependimento. Porque, na realidade, a verdade bastaria a si mesma se fosse de vez deixada modificar-se por si mesma. Ela não recebeu, e jamais receberá, muita assistência do poder dos homens importantes, que nem sempre a reconhecem ou a acolhem bem. Ela não necessita da força para instalar-se no espírito dos homens, nem é ensinada pelo intérprete das leis. São os erros que prevalecem por meio de auxílio alheio e externo. Se a verdade não conquista o entendimento por si mesma e por sua própria luz, não pode fazê-lo por nenhum reforço estranho
 [...]
não devem ser toleradas pelo magistrado quaisquer doutrinas incompatíveis com a sociedade humana e contrárias aos bons costumes que são necessários para a preservação da sociedade civil. Exemplos desse tipo são raros em qualquer igreja. Porque nenhuma seita chegará a tal grau de loucura que a leve a pensar adequado pregar, como doutrinas da religião, coisas que solapem manifestamente os fundamentos da sociedade, sendo, portanto, condenadas pelo julgamento de todos os homens, pois colocaria em perigo seu próprio interesse, paz e reputação.

E, finalmente, sobre o Islã:
Não cabe a esta igreja [religião] o direito de ser tolerada pelo magistrado [governo], pois constitui-se de tal modo que todos os seus membros ipso facto se transformam em súditos e serviçais de outro príncipe [governo estrangeiro]. Uma vez que o magistrado permitiria uma jurisdição estrangeira em seu próprio território e cidades, como ainda que seu próprio povo se alistasse como soldado contra seu próprio governo. Nem a inútil e falaz distinção entre a corte e a Igreja oferece qualquer remédio contra esse mal; pois, estando ambas igualmente sujeitas à autoridade absoluta da mesma pessoa, que não pode apenas persuadir os membros da própria igreja a aceitar tudo quanto lhes agrada, seja algo em si mesmo espiritual, seja algo que tende para assuntos espirituais, mas também de ordená-los sob pena de fogo eterno. É absurdo alguém se denominar maometano [muçulmano] apenas em religião, mas ser em tudo mais súdito fiel de magistrado cristão, enquanto ao mesmo tempo admite dever cega obediência ao mufti de Constantinopla, que por sua vez é totalmente subserviente ao imperador otomano, formulando os oráculos imaginados dessa religião segundo a este agrade. Mas esse turco vivendo entre cristãos repudiaria mais obviamente o governo cristão se reconhecesse a mesma pessoa como o chefe da Igreja e o supremo magistrado.  


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