domingo, 20 de maio de 2018

Liberais anti-conservadores -- O liberalismo clássico e as tradições morais

A crise política que atingiu o Brasil nos últimos anos e ajudou a enfraquecer a hegemonia do pensamento de esquerda abriu um vácuo que vai lentamente sendo ocupado por uma entidade polimorfa antes fundida na  aversão comum ao estatismo esquerdista, uma fragmentada direita que comporta vários tipos curiosos que vão desde os anarco-capitalistas aos monarquistas.

No meio dessa orgia anti-estatista estão os liberais anti-conservadores, aqueles que defendem uma bandeira liberal com premissas moralmente progressistas e que consideram inconcebível associar o liberalismo a uma postura moral conservadora. 
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É flagrante o desconhecimento histórico por trás dessa crença. Uma análise séria das origens do pensamento liberal, nos séculos XVII e XVIII, mostra que a noção de um liberalismo “puro”, em oposição ao liberalismo conservador, é totalmente estranha ao liberalismo clássico. O liberalismo clássico é o que hoje se chama de liberalismo conservador. Praticamente todos os primeiros liberais eram moralistas muito apegados às tradições cristãs da sociedade do seu tempo e jamais conceberam qualquer ordem moral diversa da ortodoxia dos costumes.
Pode-se, sem muita dificuldade, ser levado a imaginar que as visões morais são apenas uma faceta do pensamento desses homens, desvinculada de suas ideias políticas e econômicas. Trata-se, entretanto, de grosseiro equívoco a ideia de um pensamento dividido em caixinhas separadas, incomunicáveis. A política e a economia não são senão consequências da ética, que fornece as raízes fundantes necessárias para todos os ramos do conhecimento prático. A defesa da liberdade nos liberais clássicos e em vários contemporâneos tem como ponto de partida a concepção de uma ordem moral conservadora, somente dentro da qual podem as ideias liberais ser entendidas. Nesse sentido, liberalismo conservador e liberalismo progressista são, na verdade, cosmovisões radicalmente incomensuráveis, e o fato de que convergem em algumas bandeiras políticas e econômicas é muito mais uma coincidência do que uma autêntica comunhão de princípios.

John Locke (1632-1704), embora não possuindo uma obra sistemática de Filosofia Moral, identificou a liberdade, que lhe era tão cara, como parte de uma teoria abrangente da lei natural (afinal, a liberdade vem da lei, e, por isso mesmo, o estabelecimento do governo civil é uma garantia de liberdade), que contém os deveres eternos, emanados da autoridade divina, que submetem racionalmente toda a criatura humana. O mesmo se dá, de forma muito mais marcante, no iluminismo escocês, escola apegada, antes de tudo, ao senso moral comum, desde as primeiras influências do Conde Shaftesbury (1671-1713), passando por Adam Smith (1723-1790) (cuja obra “A riqueza das nações” só pode ser compreendida à luz de sua “Teoria dos sentimentos morais”, em que se vê que o livre mercado é parte de uma ideia de organização social, na qual a liberdade econômica é um meio de guiar naturalmente os homens ao bem moral), até David Hume (1711-1776), filósofo cético e ateu, porém, ainda ligado à concepção conservadora da ordem social e às virtudes tradicionais, de fundamento estoico.

O liberalismo progressista, como compreendido hoje, é uma invenção de John Stuart Mill (1806-1873), no século XIX. Foi Mill quem fez o liberalismo abraçar como fundamento a ideia de que cada pessoa deve buscar a felicidade a seu modo e de que a construção autônoma da personalidade de cada um, sem conhecer qualquer ordem ou limites que não a vedação da violência a outrem, é o único norte moral que uma concepção liberal pode indicar. É a partir de Mill que o liberalismo perde seu vigor filosófico e se reduz a considerações rasas sobre “direito à felicidade” ou “pluralidade de concepções de vida boa”. Curiosamente, é também Mill que insere no pensamento dominante a intervenção do Estado na ordem econômica, podendo ser considerado o pai do intervencionismo do século XX. Ou seja, na verdade, a introdução do progressismo moral no liberalismo trouxe não a sua salvação, mas a sua bancarrota.
Portanto, até esse ponto, o liberalismo era, na maioria de suas manifestações, uma doutrina moderna da ordem natural, tendo-a substituído por um culto desordenado à individualidade. A tolerância perdeu suas raízes no direito natural (herança da filosofia clássica, adaptada à terminologia do racionalismo moderno) e passou a fincá-las no relativismo (a aceitação de todas as ideias pessoais de bem moral e a impossibilidade de se decidir sobre sua correção). O liberalismo adentrou a pós-modernidade, rejeitando todos os absolutos de verdade e de bem.
O liberalismo conservador, porém, resiste em muitos dos grandes nomes do liberalismo contemporâneo. É o caso, para citar apenas um desses gigantes, de Friedrich Hayek (1899-1992). O genial filósofo e economista austríaco também não via a ordem como um limite externo à liberdade, mas a liberdade como uma das formas da ordem. O livre mercado não é senão uma parte da ordem espontânea que constrói os fundamentos da sociedade ao longo dos séculos, assim como as tradições morais e os costumes jurídicos (para Hayek, entusiasta da common law, a lei não pode ser fabricada por um legislador, mas deve refletir a cristalização das normas de conduta naquela comunidade). A liberdade econômica já nasce essencialmente vinculada a tais instituições, que a dirigem naturalmente para o bem comum (o pendor liberal do vienense vem por não crer que a intervenção estatal seja capaz de substituir a sabedoria milenar da tradição como orientadora da ordem)[1].
Em suma, não há qualquer contradição em que liberais se oponham à licenciosidade do esquerdismo cultural. Um liberal pode e deve defender o valor absoluto da vida ante as tresloucadas demandas por “autonomia feminina sobre o próprio corpo”. Evidentemente, jamais anuirá à interferência estatal na escolha individual de manter relações homossexuais, o que não significa apoiar a revogação da ordem natural por um decreto que, contra a própria realidade fática, afirme a igualdade entre duas entidades ética, biológica e sociologicamente distantes (o casamento tradicional e a união homoafetiva). Da mesma forma, pode se valer da prudência ao avaliar eventuais danos sociais causados pela liberação das drogas que transbordem a simples esfera do indivíduo que se droga.
Como é óbvio, não existe patente de definições, e, se se quiser chamar de liberalismo apenas a vertente progressista, pode-se até fazê-lo, desde que consciente de que desse grupo se estarão excluindo Locke, Smith, Hume, Kant, Montesquieu, Tocqueville, Bastiat, Constant, Burke, Acton, Hayek, Röpke, Kirk, Oakeshott, entre outros. Nenhum desses defenderia qualquer das animalescas bandeiras da esquerda festiva. Liberalismo sem conservadorismo se degenera em mais um flanco do pós-modernismo moral, de uma liberdade vazia, sem bem, sem justiça, sem verdade. Reflexamente, poder-se-ia dizer que conservadorismo sem liberalismo cai na tentação autoritária das utopias reacionárias. Contudo, isso é outra história.

[1] Cf. Roger Scruton, “Hayek and conservatism”, in: “The Cambridge Companion to Hayek”, principalmente, pp. 209 e 218 e ss.
Gustavo França é graduando em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e editor da revista Dicta & Contradicta


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